domingo, 27 de fevereiro de 2011

CHEIRO DE FILHA


Inevitável parar para lembrar quando tudo começou. Eu ainda brincava de balanço quando me dei conta que, de dentro de mim, sairia, um dia, minha filha. Achava lindo imaginar que teria uma filha de cabelos lisos e escuros, pela branca e boca vermelha, assim como a Branca de Neve. Ela se chamaria Laura. Laura, para mim, significava Luz. Os anos foram passando e secretamente eu seguia com meu desejo – uma filha. Encontros e desencontros afetivos, altos e baixos da vida, nada alterava este desejo intenso e inegociável. Vários anos mais tarde engravidei. Durante as 40 semanas da gestação tive o prazer de sentir o desenvolver desta menina que já se chamava Laura há tanto tempo. Não toquei uma música especial pra ela, não contei histórias ou qualquer outra dica da mídia psicológica, simplesmente convivi com ela e a convidei a fazer parte da minha vida. Trabalhou comigo, me escutou, viajou comigo, dançou comigo e fez parte dos meus momentos íntimos. Mas foi no dia do seu nascimento que de fato a conheci. Quando a recebi nos braços e a toquei percebi que ali estava o amor incondicional. Olhei para ela e me apresentei: OI LAURA, SEJA BEM VINDA A ESTA VIDA, VOU SER SUA MÃE DAQUI PRA FRENTE! E ali, naquela hora, passamos a ser mãe e filha. Eu sabia como amamentá-la, como cuidá-la, mas ainda não havia percebido este jeito de amar tão diferente. A cada novo dia de vida ficava claro que ela era uma pessoa única, com desejos e posicionamentos dela, e assim a respeitei sempre. Não acho que ela seja parecida comigo, acho que se parece mais com o pai dela ou, talvez, com minha mãe. Gosto é de perceber o que vem de dentro dela, o que ela traz de novo, de seu, de próprio. Vou, então, aprendendo a amar sem posse, a amar preparando para o mundo, a amar para que seja amada por outros. Um exercício e tanto para quem estava acostumada a amar para ter perto, para ter em casa, ao lado, como se ama namorado e marido. FILHO É OUTRO VETOR. Filho é para fora. 180 graus. É saber que vai se ferir, se frustrar, se perder, e mesmo assim deixar ir. É deixar claro que somos o porto seguro, pra onde ela pode retornar sempre, mas de onde ela precisa soltar as amarras e se lançar. Lindos 7 anos de convívio que se completam hoje. Linda menina doce e determinada, que passou a semana inteira na dúvida se queria ou não crescer, querendo já morar sozinha e pedindo ajuda para se secar depois do banho! Com medo do escuro e da morte, com curiosidade e magia, se achando princesa e grande, deitando pequena a espera de uma cantiga de ninar! Linda filha menina, surpreendente pessoa que divide conosco sua vida de forma tão intensa e saudável! Ela tem nela mãe e pai, família e amigos, todos juntos dentro do coração, afirmando e garantindo pertencimento e verdade. CHEIRO DE FILHA, vida de filha, bom ter uma filha, maravilhoso amar assim...Ah! Faltou falar do negrinho de colher! Este é nosso prato preferido de final de semana, vendo um filme na TV, comendo em colheradas cheias, muitas vezes no silencio hipnótico das imagens. Momento que fica escrito por dentro, que tem gosto e tem cheiro, que tem cumplicidade e parceria. Momentos como o de ir a pé para o Colégio, cantando pela rua. Como de cócegas e de luta em cima da minha cama. Como o das brigas e limites, as toneladas de “não” e os milhares de “sim”. Rotina bárbara de viver e de sentir-se vivo! Tocando a vida com tudo o que ela pode ser tocada. Luz intensa que nos conecta com o mundo dos que amam de verdade. Este amor com gosto de negrinho de colher, com cheiro de filha que é tão grande que não cabe na gente! Parabéns filha pelo dia de hoje, agradecimentos a vocês por estarem perto de nós, escrevendo esta história de vida, da vida desta pessoa que é a Laura, hoje com 7 anos.


domingo, 20 de fevereiro de 2011

CAOS CALMO


O tão desejado e necessário silêncio está aqui comigo esta noite.
Chegou depois de um dia ensolarado, junto com as nuvens pretas, sinalizando temporal. Ele veio. A chuva não. Percebendo que eu precisava de carinho, me acompanhou a cada instante, me tocou e entrou em mim suavemente, profundamente. E ficou. Cá estou, eu e ele, sem trocar uma palavra, num calmo... Caos?! Não tenho como deixá-lo dentro de mim, não posso que fique dentro de mim, prefiro a chuva que pode chorar comigo longamente. Mas a chuva não vem... Preciso desidratar de tanto chorar, para me livrar deste caos... Nenhuma lágrima sai de mim. Sempre gostei da companhia dele, sempre necessitei silêncio por dentro, mas hoje não posso hospedá-lo, preciso esvaziar estas tantas palavras caóticas que insistentemente querem sair e atabalhoadamente querem dizer o que meu coração não suporta pensar. Tento ficar quieta, esperando as horas passarem, esperando as coisas acalmarem, me adequando a normalidade. Gestos calmos, palavras aveludadas, expectativas correspondidas, mulher educada e afável. Palavras bem colocadas, pensadas, estudadas. Tons pastéis, batom cor de boca, unhas nude, brilho no olhar, sonhos bons. Calmo, tudo calmo, tudo conforme esperado. O silencio acompanhado. Acompanhado e adequado. Casca. Isto tudo é pura casca. É preciso ver por baixo das cascas, mais próximo das entranhas, onde estão as partes em ebulição, onde os pensamentos se agitam e o estômago contorce. Lá de onde vem as lágrimas, os delírios, os desejos, os gritos. Onde moram as palavras vãs, onde elas  gritam, explodem, atordoam, ignoram e vomitam como querem. Onde se esconde a inquietação, o ódio e a culpa, a insônia e a dor, a náusea e o desprezo. Por dentro do caos. Puro cansaço. 
Caos calmo.
Convívio diário entre o silêncio e a tormenta. Tudo eu. Eu mãe e mulher, convivendo com a ausência de mim mesma e na procura do sentimento que rege este caos. Tentando, desesperadamente, entrelaçar o sombrio e a luz que há em mim, conseguindo juntar os cacos do meu eu frágil, colando um a um com prazer imenso, entendendo minhas formas, cada pedaço, cada história, cada suor. Parceiros de caminhada - silêncio e solidão, música e sol – balizadores de humor, balizadores de mim. Onde está o bom senso que tanto me faz companhia, porque se ausenta logo hoje que preciso da sua voz? Não gosto de ser cerceada, sou claustrofóbica. Não sou nada possessiva, totalmente presente, mas várias vezes ausente de mim. Sufoco se não falo o que sinto, sufoco se não tenho retorno de som. Eterno exercício de achar o som por dentro, briga pelo controle da voz, caos que alivia o calmo dia de sol, que move e desacomoda, que me faz diferente e viva, que pulsa e expulsa o que de calmo existe e de inerte persiste.
Há de fato quem pode escutar também lamentos? Há, entre tantos, os que suportam palavras mais cruas, os capazes de enxugar litros de lágrimas, de suportar o silêncio conosco, até que passe o caos e venha a calmaria? Ou será mais fácil o convívio nos dias de sol e casos engraçados? A presença dos cáusticos e sarcásticos me parece atraente, os corretos e bem educados ficarão para outra ocasião. Todos fazem parte de mim, mas nem todos fazem parte da mesma parte que se reparte aqui em fragmentos. Que fique claro - o silêncio é bom demais quando meu convidado. Mas quando entra porta a dentro e fica, delimitando a distancia do toque, tornando intransponível, fechando, lacrando qualquer possibilidade, preciso matá-lo. Vamos conversar...